miguel godinho

todos os dias diferente num mundo sempre igual

como se fossem coisas novas

o maravilhoso da poesia

e da arte, no geral

é poder fazer

como sempre se fez:

pegar por exemplo

nos textos

do sousa braga

para voltar a dizer

verdades universais

como se fossem coisas novas

coisas minhas;

ao apropriar-me de um poema

não pretendo mais do que

apresentá-lo outra vez

como uma pequena

mordedura atrás da orelha;

um poema revisitado só serve

para que consiga explicar

novamente

que quanto mais me dispo

menos nu me sinto

dias de contágio

agora vês
que as forças invisíveis das coisas
se exprimem
de uma forma rútila

que a evidência viral do mundo
é rigorosamente
proporcional
à tua pequenez

a febre

que percorre estes dias
é expressão disso mesmo
o turbilhão das horas
que se metem pelos pulmões adentro
furtando o ar

chegado a este momento
reduzes-te à tua própria solidão
e percebes que não há máscaras
ou mecanismos de salvamento
que possam prevenir o contágio
ou evitar
uma doença maior

as enfermidades
espreitam
a cada esquina do pensamento

agora vês

é fácil perder
o controlo sobre a vida

agora só há silêncio
há uma casa que grita
há o arame farpado das ruas

agora vês
nem tão cedo o mundo
volta a ser o mesmo

agora vês

o poema derradeiro do ano

estou a menos de dois dias
de fechar o poema derradeiro do ano
de encerrar as contas dos dias
de assumir que uma vez mais
as pessoas nem sempre souberam ser pessoas
que nem sempre estiveram à altura
que quase sempre tudo lhes desinteressou
que no fundo temos estado sozinhos
que tantas vezes não gostámos de ler estas coisas
porque na repercussão do espelho
só nos resta aquilo que somos,
nós próprios,
a verdade subtraída à mentira

e tantas vezes depois do turno diário
regressámos a casa frustrados
à procura de uma ilusão
atravessando as horas
cansados de forçar a palavra
a encobrir os inchaços
do corpo

o vazio permanece à nossa frente
as coisas sem sentido
a loucura de nos arrastarmos
por entre as entranhas da mentira
porque achamos que assim
temos tudo
quando no fundo não temos nada

hás de envelhecer na doença
de não saberes o porquê do mundo

e não basta dar passos hesitantes
há que continuar a tentar ser autêntico
há que saber fingir a realidade
há que saber jogar
há que saber mentir com a cabeça
há que esconder o movimento desgovernado dos olhos
há que saber dizer que sim
quando na verdade queremos dizer que não
há que saber dizer qualquer coisa
para conseguirmos continuar
a suportar a solidão

perdidos dentro de nós

há sempre o perigo
de nos vermos na posição
de termos de explicar ao mundo
a impotência
mas a verdade
é que é sempre possível
viver a vida em silêncio
fingir que não nos sentimos
perdidos dentro de nós
e que não existe uma bomba
prestes a detonar
o que nos conforta é saber que
o que alimenta os dias
é o amor

claridade

às vezes
nem uma vida inteira te basta
para experimentares
a claridade de estares vivo
e seres luz

Vestígios de pessoas

todos os dias
descubro vestígios
de pessoas
que já se esqueceram
de si próprias

um poema algarvio, em jeito de haiku

e se por qualquer motivo
sentires que o mundo te agride
vai ver o mar

!

sou um acérrimo
defensor
da violência
da palavra

mas vai-se a ver e afinal

pessoas que aparentemente se movem em prol das causas do mundo, e que tentam construir a sua imagem com base nesse princípio, mas que vai-se a ver e afinal só se idolatram a si próprias, e olham os outros com desprezo, completamente alheias aos seus problemas, preocupando-se apenas consigo mesmas, e com tudo aquilo que só a elas diz respeito

até que somos capazes

até que o puzzle das nossas vidas de repente se constitui, até que a luz desliza dos céus, até que nos conseguimos olhar nos olhos, até que somos capazes de dizer: este sou eu, esta é a minha vida, eis que aqui me encontro, eis que finalmente.